O inferno são os outros


Comenta Jean Paul Sartre.
“O inferno são os outros”

A afirmativa jocosa do pensador dá vazão ao imaginário e sua interpretação fica a critério do leitor. Pode-se entender a frase como certo exagero de Sartre, todavia não raro alguns exageros abrigam os germens da verdade. O que não pode deixar de ser comentado é o fato de que o ser humano é o arquiteto de seu destino. Muitas vezes somos nós mesmos os culpados pelos males que nos afligem. No entanto, essa tese não derruba totalmente a afirmativa de Sartre: “O inferno são os outros”.

Exemplo claro disso ocorreu com um amigo. Indivíduo entusiasmado pela vida, cuidava-se como poucos, estava sempre bem disposto até que certo dia amanheceu com febre alta, indisposição e dores no corpo. O diagnóstico: dengue.

O amigo em questão foi picado pelo mosquito Aedes aegypti, o transmissor da dengue. Interessante: sua casa estava em ordem, o problema foi na residência ao lado. O seu vizinho não tinha as mínimas noções de higiene. Quintal desleixado, pneus jogados e cheios de água tornaram-se um oásis para o Aedes. Sorte do mosquito, azar do meu amigo. Nesse caso temos que concordar com Sartre: o inferno são os outros.

A frase “O inferno são os outros” pode ser resumida numa visão equivocada de liberdade. O indivíduo acha que porque está em sua residência pode tudo e mais um pouco. Não é bem assim. Vivemos em sociedade e é preciso respeitar o espaço alheio. Quando a liberdade almejada ataca o direito inalienável da liberdade do outro, é momento de repensar o conceito.

Quando dois ou mais homens estão reunidos a liberdade absoluta é uma quimera. Viver em sociedade requer exercício constante de bom senso para não ultrapassarmos os limites do nosso quadrado. No caso em questão, a falta de higiene do vizinho colocou em risco a vida de meu amigo. Poderia ser pior, como muitas vezes acontece. Há inúmeros casos de motoristas embriagados, seduzidos pelas artimanhas do álcool, que se tornam voluntariamente o inferno dos outros. Pensam que a liberdade lhes dá o direito de agir como bem entendem. Atropelam pais de família ceifando vidas que nada tinham com seus desatinos irresponsáveis. Eis mais um exemplo real do pensamento de Sartre, o inferno são os outros.

Para ser saudável, a liberdade deve ser exercida com responsabilidade. No entanto, poucos são aqueles que conseguem uni-las. Um dos fatores para essa dissociação de liberdade e responsabilidade esta encravado na cultura distorcida de direitos e deveres. Todos sabem seus direitos, mas poucos cogitam os deveres. Recorre-se à Constituição para discorrer sobre o direito à saúde, todavia não se limpam os quintais para preservar e respeitar o direito à saúde do outro. É preciso entender que as atitudes individuais irresponsáveis geram conseqüências coletivas desagradáveis. Se não compreendermos a importância de cultivarmos a liberdade com responsabilidade jamais contrariaremos Sartre e carregaremos, portanto, por longos anos a triste alcunha de sermos o “inferno dos outros”.

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